Solo Sagrado
Há uma unanimidade no mundo da corrida: pelo custo de um par de tênis e de alguns poucos minutos de dedicação, você se torna membro de um clube de saúde que está aberto 24 horas por dia. O treinador britânico Sean Fishpool ainda acrescenta que o mais importante ainda é que, “correr” é um passaporte gratuito para uma vida mais saudável, mais relaxada e mais confiante, isto é, uma descoberta e experiência que muitos jamais imaginaram.
Para o professor Manoel Tubino a corrida é o exercício físico mais natural do ser humano, desde a pré-história. Para o jornalista e corredor carioca Yllen Kerr, a corrida permite uma reflexão sobre as suas próprias possibilidades dentro de um exercício fascinante, fraternal e singelo. É, antes de tudo, uma atividade alegre, uma arte que reconcilia o homem com o tempo, que pelo seu ritmo musical faz o homem maduro virar um jovem. Há uma série de benefícios na corrida, que não vem ao caso citar agora neste artigo, mas assim como eles, para mim, correr é viver! O homem corre por nenhuma razão e por todas, ao mesmo tempo.
O praticante da corrida de rua é mesmo um ser privilegiado. Além de seu baixo custo e de todos os seus benefícios, a prática dessa modalidade esportiva ainda permite que o atleta tenha um amplo leque de escolha para diferentes tipos de superfícies para correr. Pode ser na grama, no chão batido, na areia, por entre as trilhas, no asfalto, na esteira, etc. É o terreno, por onde toda essa arte toma forma e movimento.
Podemos considerar o solo, por onde passa os pés ou os tênis dos atletas, como algo muito sagrado. Por isso, não há por que considerar um colega corredor como um companheiro somente do asfalto ou das pistas e trilhas. Melhor seria considerá-lo, de uma forma ampla, como um “companheiro de corrida”, independente do terreno onde se desenvolve essa prática. Esse foi o pensamento que motivou a mudança do nome deste blog para “Companheiros de Corrida”.
Apesar de grande parte corredores adotar o asfalto como terreno preferido, afinal é nele que se realiza grande parte das nossas provas, acreditamos que, com esta adequação, deixamos o termo mais abrangente e fazemos justiça à principal função desse blog que é divulgar e estimular a prática dessa modalidade esportiva, independentemente de onde ela é praticada.
A variabilidade de pisos e terrenos colocados à disposição dos atletas, além de oferecer diferentes opções para melhor condicioná-los fisicamente, ainda exerce outra importante função: a quebra da monotonia e da rotina, tornando a corrida e o percurso escolhido mais agradável.
Aproveito para citar Yllen Kerr novamente. Ele nos narra uma cena pitoresca ocorrida na década de 70 e que possui uma relação direta com esse tema. Para ele, a corrida, especialmente a longa, era como a vida, onde quem corre, o faz por alguma razão, fosse nos calçadões, nas ruas ou praças de uma grande cidade como o Rio e São Paulo, ou em estradas do interior, em matos atravessados por estradas de terra ou por trilhas, ou nas avenidas de Paris. Com base em sua experiência naquela época, ele nos conta que já havia visto de tudo.
Em seu relato, no carnaval de 1977, ele e um grupo de amigos resolveram fazer um treino dentro de uma fazenda da região. Então, prepararam os materiais e já no primeiro dia, dispararam pelo campo, cortando a fazenda de um lado para outro. Como o percurso envolvia uns dez quilômetros, eles tinham que passar por casas de colonos, algumas roças e gente que transitava por aquelas redondezas, a cavalo ou a pé.
No terceiro dia, quando eles se reuniram em uma pequena cachoeira para uma ducha reparadora, um humilde homem do campo, com seu sotaque típico, chegou e perguntou timidamente: - Gente boa, o que é que tá acontecendo que tem pessoal correndo pra todo lado? A perplexidade de um homem simples, simplesmente não o deixava entender que alguém estivesse por ali correndo sem um motivo grave.
Comigo também ocorreu uma cena pitoresca, quando decidi fazer um treino de fortalecimento no chão batido de uma fazenda localizada no Triângulo Mineiro. Apesar de estarmos em 2012, imaginem a cena do pessoal local me vendo correr naquelas redondezas calçando um Vibran Five Fingers. Estava mais para um extraterrestre e, com certeza, foi engraçado, pois até os cachorros da fazenda viram a cena com desconfiança e espanto.
Em seu manual devotado aos iniciantes à corrida de longa distância, Sean Fishpool, nos apresenta, segundo a sua experiência, as cinco melhores superfícies para se correr, e as duas piores. As apresento abaixo.
As Melhores:
1)Trilhas planas
As trilhas em florestas, apesar de serem sujas, com folhas secas ou pequenas lascas de madeiras, são naturalmente amortecidas. Além disso, elas naturalmente conduzem o corredor a um cenário bonito e inspirador. Por questões de segurança, ele sugere sempre correr ao lado de um companheiro.
2) Grama aparada
Trata-se de outra superfície generosa e macia. Ele sugere evitar a grama alta, onde podem estar escondidos alguns buracos.
3) Pista de atletismo
Talvez não seja a superfície mais excitante, mas é plana e amortecida. Além disso, essa superfície permite que o corredor tenha uma medida exata de um quarto de milha por volta, os 400 m de sua circunferência, por onde se pode calibrar o ritmo e registrar os progressos semanalmente.
4) Asfalto
Não é a superfície mais macia, mas também não é a mais dura. Ele aconselha não correr mais do que dois terços de sua rodagem sobre o asfalto, além de ser necessário utilizar um bom tênis para evitar lesões.
5) Esteira
As esteiras são amortecidas, planas e seguras. A corrida “indoor”, realizada sobre elas são muito convenientes, apesar de carecerem de inspiração. Ele nos alerta que a corrida nesta superfície pode desenvolver alguns músculos em detrimento de outros, sendo necessário integrar um treinamento de força e intercalar algumas corridas “outside” sempre que possível. A esteira é sempre uma boa escolha para aqueles que retornam de uma lesão.
As Piores:
1) Concreto
É a superfície mais destoante que o corpo de um corredor pode encontrar.
2) Superfícies curvas
Algumas ruas e estradas são curvas em suas bordas para permitir a drenagem. Se essa curva for acentuada, pode lesionar o corpo do corredor ao longo do tempo. Evite-as, se possível e tente, pelo menos, mudar de direção com certa freqüência.
Para fechar, algumas considerações finais:
O concreto é o mais rígido entre todos os pisos. É o que oferece maior impacto e, portanto, o menos indicado. Essa superfície requer tênis com bom amortecimento, que ofereça proteção contra o impacto e flexibilidade para maior conforto.
Já o asfalto permite que o corredor se acostume com as condições que serão encontradas no dia da prova. Também é rígido, mas devolve o impulso da passada e permite desenvolver boa velocidade. Pode ser usado em treinos de tiro e em longões. Tênis com um bom sistema de amortecimento e flexibilidade são os mais indicados. A ventilação do pé é importante porque o asfalto, mais que qualquer outro piso, absorve muito calor.
Na grama, a maior parte do impacto é absorvida pelo chão em vez de voltar para a perna. Por isso, ela é uma boa opção para quem quer gastar mais calorias e trabalhar a musculatura. Indicada para treinos intervalados ou fartleks. Prefira tênis com um bom sistema de tração. Por ser um terreno mais macio, a grama não pede tanto amortecimento, mas o tênis deve oferecer estabilidade.
A esteira oferece uma superfície amortecida, o que reduz o estresse nas costas, quadril, joelhos e pés. É um caminho livre de obstáculos e uma boa opção para quem tem pouco tempo ou deseja controlar o exercício, a freqüência cardíaca e velocidade. Um modelo de tênis mais simples, mas que ofereça bom equilíbrio, amortecimento e estabilidade é uma boa opção.
Nas pistas de corrida, a superfície é sintética e não traz surpresas, pois não há raízes nem meios-fios. Tem um amortecimento melhor do que o asfalto, mas não é mole a ponto de provocar instabilidade. Boa para treinos de velocidade, sendo útil para quem precisa marcar a quilometragem exata. O material da pista é feito especialmente para tracionar as travas das sapatilhas dos corredores de alto desempenho. Se não é o seu caso, e você a usa apenas para treinos, não dispense o amortecimento e a estabilidade, especialmente se ela estiver desgastada.
Há ainda dois tipos de superfícies que não foram comentadas acima, mas que é importante tratarmos:
A terra batida é considerada por treinadores como o piso ideal para oferecer bom amortecimento. Todavia, ela não “segura” tanto a passada. É favorável para se realizar treinos longos e de intensidade. Para este terreno, o calçado deve ter um solado com boas ranhuras, para garantir maior tração e diminuir a chance de se escorregar. Quanto mais largo for o solado, maior estabilidade. O cadarço deve possibilitar um encaixe justo no pé e a entressola deve ser macia para absorver o impacto de uma pedra ou buraco. O tecido deve ser ventilado e possibilitar a saída de água (caso você passe por um trecho molhado). A malha do tecido deve ser resistente o bastante para proteger o pé de galhos. Se o piso for muito irregular, invista em um modelo específico para trilhas.
Já a areia é instável e submetem os joelhos, tornozelos e quadril a um intenso movimento de torção. Como esse terreno exige força de músculos que costumam ser negligenciados, treinar na areia é uma boa opção para desenvolver a força. Também é o solo indicado para estimular a propriocepção (conscientização corporal). As corridas neste tipo de piso devem ser curtas. Para algumas pessoas, o uso dos tênis mínimos, que simulam os pés descalços, ou não usar nada, possa ser a melhor opção. Por ser mais macia, a areia não requer tanto amortecimento. Cuidado para não machucar ou queimar os pés. Para quem se sente inseguro em correr descalço, um tênis baixo e leve é o ideal. Se correr perto do mar, dê preferência a modelos com um bom sistema de saída de água.
Portanto, caro companheiro de corrida, não há desculpas! Aproveite bem o solo sagrado. São várias as opções colocadas à sua disposição. Quem não dispõe de tempo para atingir uma pista melhor, pode correr em qualquer lugar. O quarteirão em volta de sua casa já é uma boa escolha. Uma boa superfície deve proporcionar um bom piso e uma boa metragem. Uma última recomendação fica por conta da importância de se variar de pista, não somente para quebrar a monotonia, mas também para fortalecer e dar mais confiança ao corredor.
Boas corridas!
Fonte:
KERR, Illen. Corra para Viver. Rio de Janeiro: Editorial Nórdica Ltda., 1979.
FISHPOOL, Sean. Beginner’s guide to long distance running. London. Axis Publishing Limited. 2002.
Muito legal! Gosto deste assunto, os tipos de piso, muitos corredores não têm ideia de como correr em alguns tipos de piso pode ser prejudicial. Gostaria de citar o piso de pedra (Pista de 600 m no Clube Ferreira Pacheco) onde fazíamos os treinos e que é tão prejudicial quanto aos pisos de concreto. Ainda não tive coragem de encarar um tênis minimalista tipo os Five Fingers e outros modelos que estão sendo lançados, tenho um corpo pesado e a minha pisada com tênis de amortecimento já não é das mais leves, sofro com o impacto, terei que me educar muito para conseguir correr com um tênis destes. Tenho como conceito que este tipo de tênis serve muito bem para corredores de perfil mais leve e que conseguem correr todo o percurso de uma corrida com a pisada de meio e ponta de pé. Muito bem abordado o assunto, parabéns.
ResponderExcluirRene, muito bem lembrado. Faltou citar as pistas de construídas de pedra, como a do Clube Ferreira Pacheco. Eu mesmo desenvolvi duas lesões graves treinando naquela superfície, que me deixaram mais de 3 meses longe das pistas de corrida.
ExcluirUm bom motivo para incluirmos as pistas de pedra no artigo, está no fato de que a área de caminhada e corrida de grande parte das Praças Públicas de Goiânia, são construídas com bloquetes ou pedras. Portanto, o assunto é muito recorrente por aqui e requer muito cuidado por parte dos corredores. No quesito dureza, a pista de pedra se compara a do concreto. Devemos evitá-las, sempre que possível.
Um grande abraço e obrigado pelo feedback.
Precisamos treinar juntos qualquer hora dessa para colocar nossas conversas em dia!
Um grande abraço!
Nilo
Rene, um dos lados bons da vida de corredor é que, apesar do homem correr desde a pré-história, muito do conhecimento ainda está sendo construído, especialmente em função de que cada um de nós reagimos de maneira diferente frente aos estímulos físicos. Daí a grande variabilidade de acessórios e ferramentas colocados à nossa disposição. Foi por isso que resolvi experimentar o Five Fingers e relembrar como é "correr naturalmente". Já o utilizei duas vezes: na grama e no chão batido. Correr com ele é muito diferente de correr com os tradicionais tênis. As passadas mudam naturalmente. Exige-se muito da panturrilha. Está valendo a experiência.
ExcluirUm grande abraço!
Nilo